ANDRÉ DE CAMPOS
Lisboa, Portugal
Há uma peça que me transformou bastante e transformou-me no sentido de eu nunca ter sentido o que senti ao ver aquela peça, nunca tinha sentido aquilo que senti. Que foi medo. Nunca tinha sentido medo a ver uma peça. O mais engraçado é que enquanto espectador nós estamos numa posição um bocado confortável não é, sempre, e hoje em dia depois de tudo aquilo que está acontecer, por causa do paradigma que estamos a viver, é uma posição desconfortável porque estamos com máscaras, não temos ninguém ao lado, não é das situações mais cómodas para se ver espetáculos mas ao mesmo tempo cria-nos uma posição muito confortável, cada vez mais confortável e cada vez mais distante, eu acho, do que está acontecer em palco. Isto tudo para dizer que, ao contrário daquilo que nós sentimos agora, ou daquilo que eu sinto agora, cada vez mais, nessa particular peça eu senti mesmo medo. E é uma das coisas que não se sente muito enquanto espectador, eu pelo menos não costumo sentir muito. Foi uma peça do Castelucci, foi no São Luiz, acho que foi há uns 2 anos atrás, o “Democracy in America”. A peça para mim, foi uma das melhores peças que eu já vi em toda a minha vida, por várias coisas, desde o tema, às luzes, ao som, à maneira como a peça estava toda feita e criada. E o Castelucci sempre foi um criador que me suscitou muito interesse devido ao background dele, enquanto criador, uma pessoa que vem das artes plásticas, uma pessoa que estudou os mestres todos e que utiliza isso como referência para fazer as peças dele, portanto há sempre uma referência quase ao nível mitológico não é? Ele quase que apresenta o Olimpo, sempre que faz peças e isso é uma coisa fascinante.
Só que nessa particular peça, acontecia uma coisa em palco antes de me dar medo, que me pôs num sitio muito especifico, parecia uma espécie de possessão e depois um exorcismo a seguir. E aquilo estava mesmo bem feito, ou seja, eu nunca assisti a uma possessão na vida e nunca assisti a um exorcismo na vida mas da minha imaginação e do meu pensamento, aquilo era real. Era o mais real possível, é claro que eu sabia que não era e que aquilo era só um espetáculo e que havia sempre essa posição de conforto que eu procurava. Só que houve um momento particular na peça, que eu não consigo explicar como é que ele fez, como é que aquele sítio foi feito, como é que aparecia, estava tudo escuro e aparecia um braço no meio do nada, no meio do palco, mecânico, com luzes, a música estava assim ao rubro, uns baixos ao rubro, e esse braço que eu não sei como é que foi feito, deu-me um medo incrível. Um medo do inexplicável, como é que de repente eu estou a ver uma coisa, e eu já estive do outro lado, eu sei mais ou menos como é que as coisas são feitas, é quase aquela sensação de um ilusionista que vai ver o espetáculo de outro ilusionista e sabe mais ou menos como é que as coisas são feitas, só que naquele momento eu eu acho que me senti um verdadeiro espectador porque eu não sei como é que as coisas foram feitas e esse não saber, esse não conseguir explicar de uma maneira racional, ou minimamente racional na minha cabeça fez-me ter muito medo. E esse medo fez-me viajar para outros sítios, fez-me arrepiar, fez-me contorcer-me todo na cadeira, fez-me questionar se eu não devia me levantar e ir embora, fez-me questionar se eu estava realmente a alucinar ou não… é uma sensação muito estranha, estás num sítio muito concreto, muito racional e tiram-te o tapete, tiram-te o tapete da maneira mais inusitada possível. E ainda hoje em dia eu não sei como é que aquilo foi feito, e ainda hoje em dia eu não sei se aquilo que eu vi foi realmente aquilo que aconteceu.